quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Guarda-joias


Minha mãe deu-me uma caixinha,
modesta, mas eficaz
no seu propósito de guardar
jóias e perguntas,
segredos de encantar.

A caixa não tinha fundo, 
mas bastante albergava,
E, apesar de finita,
era um mistério,
o tanto que guardava.

Outrora caixa de tesouros,
agora caixa para esconder,
pedras pesadas, 
saudades (mais do que mágoas),
para que ninguém as possa ver.

E por mais que a queiram abrir,
com mil chaves está cerrada,
nem espreitando se vislumbra
o quanto abarca, e abraça,
entre lágrimas, na penumbra.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Que horas são?

 -Que horas são?
E o tempo deixa de ser a régua calibrada pela sucessão de algarismos.
Em boa verdade, aqui é sempre dia, enquanto o olhar estiver perto e desperto, consoante a perpendicularidade dos seus entrecruzares.

- Tem horas que me diga?
Horas, minutos, segundos… se os tenho, não sei.
Talvez os tenha na medida em que todos temos, enquanto persiste a ilusão de que se possui o tempo.

O dia e a noite estão lá fora, longe do alcance da vista...

E no meio da conversa (ou monólogo) voltei a perder o último comboio.
Amanhã haverá outro (se é que as automáticas locomotivas e seus pontuais maquinistas não fazem novamente greve…).

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Bela flor


Que flor será esta,
plantada,
(não semeada)
em frio e alvo vale?

As flores não gostam de vaso,
nem de cama,
nem de gelo,
nem de altar.

As flores são simples 
gostam de campo,
de sol,
de terra,
de orvalho para as regar,
E de fragrâncias, 
de outras flores e de mar,
trazidas pelo vento,
(ou qui-ça por brisas de outro lugar).

Cortam-se as flores,
as mais perfumadas e singulares,
decepa-se o que as une à sua raiz.
E sem pudor, 
remorso ou aviso,
são relegadas para um outro país.

Em jarras ou solitários,
tocadas pela beira d’água
com uma falta que não se pode entender.
A sede é tanta,
que o doce que as mantém 
é fel, 
é desdém,
só a custo o conseguem beber.

E as pétalas abrem,
afastam-se e murcham,
caiem por todo o branco em seu redor.
E já sem perfume,
sem vigor ou queixume,
permanecem e sonham com um outro lugar.

Que olhos estes…
Que egoísmo traiçoeiro,
que silêncio,
que agarrar!

Que flor será esta?
Não sei…
mas é uma Bela flor,
porquanto o seu pé durar.

sábado, 28 de março de 2020

Malmequer

Não me olhes,
que eu morro...

Na cadência do tempo que nos marca
os dias sucedem-se,
ainda sem açucenas,
e sigo...

Sigo-te
e não vejo,
nem tão pouco a minha sombra
de mera coroa decepada.

Já faz frio
e eu sinto-me sem mim,
assim,
sem pétalas levadas ao vento.

Leva-me.
Não,
deixa-me!

Deixa que beije este solo
que ainda me quer.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A mulherzinha

A mulherzinha
é versada na arte de agradar,
aprendeu com a mãe,
entre as muitas tarefas do lar.

A mulherzinha
sabe que não é senhora de si,
mas nãosabe quem é,
para além do ser mulher de alguém.

A mulherzinha
espera e não desespera.
Abre a porta  quando tocam à campainha,
pendura o sobretudo no bengaleiro
e serve uvas sem grainha,
enquanto massaja pés descalços
(menos cansados dos que os seus).

A mulherzinha
é malabarista,
palhaço,
mágico
e bicho amestrado.

A mulherzinha
é eternamente cumpridora,
apesar de não ser eterna
e de se sentir mais deformada
do que conformada.

A mulherzinha
é coisa de trazer por casa,
é o queimar das horas vagas,
semelhante a cobertor de sofá
(ou a chinelo de quarto).

A mulherzinha
Não usa batom vermelho
(nem tão pouco unha pintada),
nem vai ao cabeleireiro
disfarçar anos medidos com fios brancos de cortar.

A mulherzinha
não tem roupa de marca,
mas tem marcas na roupa e na pele,
do desgaste das horas
e do passar... a ferro e fogo!



sábado, 7 de abril de 2018

Cumulonimbus

Num fim de tarde,
ou início de noite,
ante os sons que colapsavam mais um dia,
pairava uma nuvem densa,
pelo peso das horas enegrecida.

Pairava e permanecia,
numa inércia aflitiva,
tal era a sua presença,
que tudo em redor como que desapareceria.



sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Elogio fúnebre a um gato


Gato negro,
gatos pardos,
fúria fora, ergo
mal parados.

A noite caiu.
Ali permaneceu imóvel,
intocável e ressoante.
Perdida, contemplada por
aqueles que apressados passam.

Voluptuosamente esgueira-se
arrasta-se num todo,
o céu,
deixando-o coberto pelo negro.

Breu infinito e reluzente,
conquistador e transparente.
Mal,
vívido,
com um pequeno toque de atonalidade.

Gato negro,
gatos pardos,
fúria fora, ergo
mal parados.

Uma dissonância surge,
revela-se de rompante,
Sorri de repente
A fera... Ruge
A vida urge?

As flores tão lindas
nos parapeitos das luzernas.
O verdume do ribeiro,
que faz esquina
com várias tavernas.

É de certo a algazarra tomada
por tão efémera geada.
Por manto fino e doce
de elevada tese.

Gato negro,
gatos pardos,
fúria fora, ergo
mal parados.

Escuro,
observa erguido
a mal feitoria dos bem feitores,
a intimidade de cantores.

Por ali se estendeu.


Assim decidiu permanecer,
esquecer-se de viver
e num ápice

morreu.


sábado, 19 de julho de 2014

Espasmo hipnico


Hoje senti uma dor,
latejava por dentro...
E a lembraça de uma recordação aflorou os sentidos,
entorpecendo as acções.

Era como quem revê,
como quem quase esquece,
como se ao adormecer um abismo de fronte se deparasse
e um súbito estremecer nos separasse da queda.

Ardia,
queimava
e fulminava...

segunda-feira, 31 de março de 2014

O Nada!

Buscar na inexistência
a calma que reconforta
o interior e a alma temida e julgada morta.

O nascer de um sentimento.
O crescer de sensações que transbordam persistentes,
curiosamente eloquentes.

É por dentro!
Sem dúvida que é por dentro que o ser se rói e se curva
obediente, impotente, mas tão duramente presente.
Apesar de tido como submisso,
apesar de não reclamar um lugar,
ali está! Firme, hirto,
qual cadáver enregelado!

São ondas quentes,
são chamas geladas,
ideias transparentes
em ventres cerebrais criadas.

Em cada dedo,
o carvão suave que se submete à escrita
e se arrasta, se desgasta numa cinzenta pasta
de linhas, folhas e gotas de pensamento.

A beleza é efémera!
O agrado não subsiste,
após a satisfação triste
do desejo já ausente.
Ah!… Quimera!

Acabou a consciência racional.
Cessou a dura luta na jornada vital.
Romperam os rios humanos de lava sanguínea
canalizando-se para uma só prioridade: Fluir!…

O fim e o início encontram-se.
Beijam-se fugazmente, sofregamente, de repente.
E depois que a história sucumbiu,
e antes que o tempo surja,
o ponto de perfeição ansiado:
- O escuro…
- O silêncio…
- O Nada!




25-08-04

VI

As palavras têm vícios. Encadeiam-se, emparelham-se, atraem-se, circunscrevem-se entre margens e ganham a estaticidade do hábito. Na verdade, são semelhantes às pessoas nas suas rotinas, embora um travo de tinta permanente não se compare à companhia de uma boa dose de outros líquidos dotados de propriedades mais efémeras.
Por vezes emaranham-se, rebolam-se num contorcer de pernas (ou penas) partidas, misturam-se e quase perdem a sua identidade, por girarem e gerarem novos contextos, ou sem textos, dependendo da prosódia ou da rima.
Também as há espartilhadas, apertadas, sufocadas entre vírgulas que se assemelham às quatro paredes de uma prisão, mas o discurso transcorre, correndo, e escorre como fluidos circulantes aprisionados num percurso infinito de tédio e vida.
No fundo, as palavras são baratas, não no seu sentido entomológico (embora esta constatação dependa da tinta que as compõe), que se lhes assemelham mais em significância do que em forma ou estilo. Circulam em palcos brancos, descrevendo retas que se unem em círculos, em espirais, quais borrões em catadupa e velocidade estonteante, resumindo-se à ausência de esforço ou a uma valente pisadela no alto do seu exosqueleto.
Podemos presumir, finalmente, que não têm vida, pois trazem somente prenúncios e silêncios, qual boca derradeira.
"A solidão abraça e abarca a todos..."
Presumir assim como presumimos e resumimos outras e mais verdades inválidas, tanto na sua formulação, como no seu âmago encadeia-nos num discurso tautológico: o amor está do coração. Pois, de facto, não só não se acumula nas coronárias contracurvas, nos meandros do miocárdio e pericárdio, no colesterol das arteriais autoestradas, como de veras não está, nem tão pouco vem nem vai de e para lado nenhum, simplesmente evapora-se.
Noutras circunstâncias, não menos frequentes, revestem-se (as palavras)  de movimento, de temperamento, de imprevisibilidade (acham elas) e falam de outros mundos, de sonhos e irrealidades, de projeções e esperanças (cegas pela opacidade das folhas que habitam). Nesses momentos, contorcem-se e exasperam conscientes da sua previsibilidade, que nunca lhes trará a visibilidade do acaso, da inconsequência, da eventualidade.
É... as palavras têm vícios e eu também.

terça-feira, 11 de março de 2014

A poesia


A poesia surge quando se faz silêncio
e uma luz ténue ilumina os contornos do que é importante,
no meio da penumbra...

À luz da vela



Deixa-me olhar-te enquanto dormes.
Por um instante ainda aqui estou
E a vela arde a sua derradeira luz,
Envolvendo-nos numa luz crepuscular.

O mar ecoa, distante,
Fazendo-se ouvir na quietude da noite
E a tua brisa, um sopro,
Ondula uma madeixa do meu cabelo.

Do teu olhar não há rasto,
Sob a beleza das tuas pestanas,
Vais na maré, já alta,
E eu estou em terra,
sinto grãos de areia
Que me toldam a visão.

A viagem está marcada,
A partida não tarda em chegar,
Então a luz apaga-se...
Não vês, não vejo,
Mas sei-nos aqui ancorados,
Enquanto os nossos sonhos andam à deriva,
Por uma noite ou uma eternidade.

Boa noite, meu amor,
Até amanhã...

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Pausa

Movimento, agitação,
perplexidade, reacção,
Incremento, modelagem,
revolta, criação!

Os dedos cospem
o íntimo rejeita,
moem, distorcem,
e da purga, a obra é feita.

A voz que não era ouvida,
fala sem dizer
e do discurso desordenado
a ordem brota sem o perceber.

Tinta, gralha,
breu e fél,
das entranhas esconjuradas
arde a doçura do mel.

E no silêncio que anunciava o fim,
já não se finda o que era calado,
pausa, delonga, ou nada,
o recomeço! (atrasado?)


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Alma

Sabes de que cor é a minha alma?
Eu digo que é cinzenta
Que é bassa,
Que é áspera,
Que fere,
Que se mantém firme, a medo,
Que é fel!

Podia, ao menos, esquivar-se
Deixar-se imobilizar,
Consumir-se,
Extinguir-se,
Sumir-se e deixar-se ficar,
Sabe-se lá onde
Em que paragens,
Em que paisagens,
Em que tédio envolvente,
Dominante,
Constante...

Se se mantivesse ao menos
distante,
Perdida,
Fugida...
Se não voltasse,
Não regressasse nunca mais,
Deixando somente um rasto
Que com o tempo de esbaterá...

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O que é preciso fazer?

"- O que é que é preciso fazer? disse o principezinho.

- É necessário ser paciente, respondeu a raposa. Sentas-te primeiro um pouco longe de mim, assim, na erva. Eu olhar-te-ei pelo canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é fonte de mal-entendidos. Mas, de dia para dia, poderás sentar-te um pouco mais perto...

No dia seguinte o principezinho voltou.

- Era preferível teres voltado à mesma hora, disse a raposa. Se vieres, por exemplo, às quatro da tarde, a partir das três começarei a sentir-me feliz. Quanto mais a hora avançar, mais me sentirei feliz. Chegadas as quatro horas já estaria agitada e inquieta; descobriria o preço da felicidade! Mas se vieres a qualquer hora, ficarei sem saber a que horas hei-de vestir o meu coração... [...]

Foi assim que o principezinho cativou a raposa."
in O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry




Por favor... cativa-me!

"Foi então que apareceu a raposa.
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu delicadamente o principezinho, que se voltou mas não viu ninguém.
- Estou aqui, disse a voz, sob a macieira.
- Quem és tu? perguntou o principezinho. És bem linda...
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, disse o principezinho. Estou tão triste...
- Não posso brincar contigo, disse a raposa. Ainda ninguém me cativou.
- Ah! desculpa, disse o principezinho.
Mas, depois de ter reflectido, acrescentou:
- O que quer dizer 'cativar'? [...]
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa 'criar laços...'.
- Criar laços?
- Isso mesmo, disse a raposa. Para mim não passas ainda de um rapazinho muito parecido com cem mil rapazinhos. E não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Para ti sou apenas uma raposa semelhante a cem mil raposas. Mas, se me cativares, teremos necessidade um do outro. Para mim serás único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...[...] A minha vida é monótona. [...] Mas se me cativares a minha vida ficará como que iluminada pelo sol. Conhecerei um ruído de passos que será diferente de todos os outros. Os outros passos fazem-me meter debaixo da terra. Os teus, chamar-me-ão para fora da toca como uma música.
A raposa calou-se e olhou muito tempo o principezinho.
- Por favor... cativa-me! disse ela."

in O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Folhas brancas

Folhas brancas,
folhas virgens,
que risco com o meu pensar,
como é a dor que sentis
com este meu dilacerar?

O pensamento é sublime,
a escrita é banal
e eu na minha humana arrogância
subjugo o etéreo ao material.

E eu faço e acontecem,
submetidos à minha força carnal,
ragos de vontades,
mentiras, verdades,
verbos, adjectivos,
desejos, imperativos
que te percorrem
e transcorrem sem parar.

Depois do acto consumado
pouco, ou nada, resta por tocar
e quem te olha, já não te vê.
Só resta a mácula,
o branco sujo pela mão
e o poema ainda quente
que te esventrou sem perdão.

A noite diz...

Pergunto à noite imóvel
que murmúrios calou em si,
mas é em surdina feita a sua resposta,
com o maior silêncio que conheci.

E quanto mais pergunto, mais se cerra,
ferida, por eu o cortar,
cada tentativa é uma investida,
calo-me, arrependida por falar.

Estranha é a nocturna linguagem.
Na escuridão, com imponência,
sem quês, nem porquês,
tudo se vislumbra como numa miragem
e o nada aproxima-se de vez.

Agora temo a noite,
ensurdeceu-me porque o quis
e eu grito, mas já não me oiço:
"A noite diz..."

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ainda é Verão

Tantas vezes partimos
que algo se parte a cada adeus.

Nos teus olhos
antecipo a distância dos meus.
Nesse espelho
vejo que não goteja
porque ainda é Verão
e não antecipo o Inverno
que gelará o lago primaveril.

Não partas no Inverno,
meu amor!
Sem o calor dos teus braços
os nossos corações tornar-se-ão estátuas
e as estátuas não são como nós,
são frágeis,
frias,
imóveis
e partem-se a cada partida.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Que distância vai da volúpia ao amor?
A de um fugaz rastilho
que ardendo se consome,
ou a de uma curta mecha
que lentamente se extingue?

domingo, 7 de agosto de 2011

Partida

Mal se instalara o acre da partida
E já ardia a ausência.

Matizes em tom de saudade
Contorcendo-se,
Adensando-se numa espiral confusa,
Num movimento concêntrico.

E a distância como que aumentava
A cada círculo completo
No espartilho do tempo.

E a angústia da espera
Já não advinha da dor,
Mas sim da urgência do reencontro.

Então,
Nesse momento,
Dir-te-ei sem palavras
(como sempre o faço)
Que não é um pêndulo
Que rege o meu dia,
São outras batidas
E silêncios feitos poesia.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O que não te disse...

Olhei no fundo dos teus olhos,
ainda tão estranhos aos meus,
e no fugaz momento em que se encontraram,
no escasso instante que um arrepio me percorreu,
tive vontade de...
tocar-te.
Sem luxúria,
sem sentimento de posse,
somente tocar-te
para ter a certeza que eras real,
afagar-te a face.
Mas não o fiz
e continuo na dúvida...

segunda-feira, 30 de maio de 2011

V

O relógio marcava pontualmente as quatro horas. Quatro horas, a hora esperada. Era como se os minutos, os segundos que a compunham fossem demasiado grandes, ou estivessem dilatados. A qualquer momento os ponteiros desintegrar-se-iam, conscientes de que mais nenhuma hora, minuto ou segundo teriam importância para serem indicados. Não, comparados com aquelas exactas quatro horas.


O hábito, quase obsessivo, da pontualidade fazia com que as quatro horas fossem como que antecipadas, instalando um sentimento misto de euforia e receio, bem antes dos ponteiros dos minutos e segundos se alinharem verticalmente. Provavelmente a sensação de dilatação provinha mais do vício de viver na antecipação, do que duma alteração na relação espaço-tempo, ou do que do êxtase do relógio, em dar as quatro horas certas.


É estonteante a velocidade a que o presente se torna passado ou a que o futuro se torna presente. E, embora o tempo seja percepcionado de forma linear e unívoca, na verdade as relações presente-passado e futuro-presente têm naturezas distintas e comportam significados diferentes, quase opostos.


A primeira, presente-passado, é uma relação pesada, lenta, movida pela nostalgia do que foi, já não é. É revestida pela aura, quase sacralizada, do inalcançável, do pertencer ao domínio do que se findou. Inevitavelmente surge um sentimento de perda, associado à impossibilidade de agir, ao activo, que se torna inactivo e ao mergulho na neblina das recordações, do que foi, mas podia não ter sido, ou do que não foi, mas que queríamos que tivesse (nem que por um segundo) sido. Contudo, o que interessa para o curso temporal que percorremos é que foi, já não é.


A segunda relação, futuro-presente, é rápida, fugaz, aliás, acelerada como se estivesse em rota de colisão. Por vezes afigura-se a uma imposição vinda de surpresa, outras vezes a uma confirmação de algo pressentido. Aqui não há lugar para a nostalgia, pois encontramo-nos no plano da praxis, do finalmente fazer.
Independentemente da ansiedade que esta relação implica (superior à relação presente-passado) ambas relações possuem em comum o seu determinismo e a aceitação, mais ou menos pacífica, por via da univocidade.


Com isto, a relação de futuro-presente num ápice passou à relação presente-passado e já eram quatro horas e quinze minutos. A passagem de futuro a passado resumia-se, afinal, a uma palavra: ESPERA. E a espera prolongou-se e prolongava-se. A dilatação das quatro horas estendeu-se interminavelmente até ao sol posto e ao frio insuportável do entardecer.


Entardeceu. Entardeceram as quatro horas e o que me restou foi a espera e a nostalgia do que podia ter sido, mas não foi; do que devia ter sido, mas que a surpresa do futuro, tornado presente, indelevelmente transformara em passado, no que não foi.

sábado, 28 de maio de 2011

Ruído

E tudo o que me rodeava era um imenso ruído.
Vibrava,
ressoava
como um arrepio.

Sem aviso,
sem permissão
e sem pudor,
entrava...

Aos poucos instalara-se
e derivava,
oscilando em rectas perturbadas.

Privado de direcção,
estendeu-se.
Rodopiou numa espiral,
contorcendo-se,
e eclipsou-se.

Subitamente,
a ausência de som,
a calma,
e não contagiavam:
dilaceravam!

Tentei gritar,
calei.
Tentei falar,
falhei.

Só silêncio,
o perturbador silêncio...

E o ruído?
O ensurdecedor ruído?

Findou...
Engoli-o!

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Brisa



E então foi como se a brisa da tarde se animasse pelo beijo sôfrego do sol.

Aconteceu, eu encontrar-me no seu caminho...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A noite estremeceu
sob a voz silenciada.

Na distância dormente
a dúvida brota dissonante,
por entre murmúrios imperceptíveis
e sombras que se adensam,
demasiado tangíveis.

Em que monólogos
ganha forma a incerteza?

E o abandonado corpo sinuoso,
imbuído pela cadência do sono,
sugere longíquas paisagens,
tecidas com fios dourados.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

IV

A luz entrava pelas portadas entreabertas, como que buscando um alvo, uma pálpebra, talvez, distraída pela candura do sono. No entanto, foi um olhar que atingiu, desperto, disperso, e que subitamente incitado a focou de volta. Pequenas partículas dançavam na diagonal que trespassava o quarto e reluziam, fugazmente, para acabarem por emergir, de novo, na envolvência negra. Era aquilo a felicidade, uma brecha momentânea na escuridão, captada num relance.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo, distraindo-a do estado de contemplação em que a luz a mergulhara. Somente o fervilhar, sob a forma de calor, e um suspiro súbito denunciavam outra presença sobre os lençóis. Não era uma ilusão, trazida pelos subterfúgios enganadores do sono, nem um anseio expectável, por algo que ainda não tinha sido. Aquele era o presente, o agora que anulava o nunca.

Numa tentativa de gravar corporeamente o momento percorreu primeiro os lábios, depois o recorte curvilíneo do pescoço e deteve-se no peito, onde se tornava evidente que o ritmo da vida era diverso do da noite anterior. O enlevo impetuoso tinha dado lugar a um ostinato grave e regular, menos sincronizado com o seu. A volúpia refreara e a respiração tornava-se quase imperceptível.
Do meio do silêncio um abraço envolveu-a e selou o que viria a ser a recordação daquele instante.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

III

Acordou com dores que a impregnavam. A noite fizera-lhe mal. Ou ela, ou o peso do seu próprio corpo espalmavam-na contra o chão, num misto de inércia e atracção gravítica.
Lá fora calavam-se as últimas aves nocturnas e remexiam-se as primeiras da manhã, mas a fixação em si própria não lhe permitia desfrutar da envolvência.
A custo apoiou-se na cadeira, como uma criança que depois de um tombo se segura às pernas da mãe, e ergueu-se. Afinal a sua cabeça talvez tivesse algum tipo de conteúdo, uma vez que agora sentia-o; e devia assemelhar-se ao chumbo, pois eram quilos, toneladas, que teimavam em mantê-la na horizontal.
Pensamentos desconexos formavam-se na orla do seu consciente. Pediam que os soltasse, ou que, pelo menos, os tentasse balbuciar, mas quando o silêncio se instala é quase impossível quebrá-lo.

"La mer, la fin... le féminin..."

E o discurso transcorria primeiro em gotas, depois em torrentes que se adensavam e jorravam pela face, como que inanimada.
Subitamente, a sua atenção foi de novo direccionada para o exterior. Começara a chover e os beirais multiplicavam o coro de gotas (outras!), vindas algures do céu. Que afinidade sentiu, quase sob a forma de consolo... Curiosamente o que as distinguia das suas era tão somente a ausência de sal e sentiu-se menos só, pela amplificação que a chuva repentina lhe proporcionava.

Qual teria sido o percurso que a trouxera ali? Que consequências? Que acasos?... Que desígnios haviam congeminado?

Nada, nenhuns..

Um conjunto de escolhas que agora a cercavam e a ameaçavam estrangular, a qualquer momento.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

I

Cansada do corpo que carregava, fitou o néctar negro escondido entre as paredes vítreas que lhe adivinhavam o odor e o sabor mais cáustico do que doce.
De um só trago transferiu o acre do exterior para o seu interior, na esperança que o peso se esvaísse.
Haveriam de passar alguns momentos, calados por outros tragos subsequentes. Mas… esses já lhe fugiam, como tudo o resto, ou pelo menos assim esperava.
A fluidez, não só do que sorvia, mas de todo o invólucro que a circunscrevia, era o estado que ambicionava: tudo deslizando de um orifício para outro… em espiral… em queda livre, sem retorno…
Dos dedos, a dormência. Da cabeça, o vazio. Da língua… que língua! E no entanto estava em silêncio, tal como todas as suas vivências e memórias.
A sua pele é vermelha escarlate e grita em surdina. Forças internas, anteriores à sua existência, transcorrem sufocando a razão e gemem ordens e desordens, pulsares e latejares, desejos, desvios… “Going down, going down now, going down, down, down…”, ouve ao longe…

Então todo o cenário escurece.
Na penumbra os vultos não tangíveis são mais apetecíveis…

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Ssss...

Ssss...
Sem...

Ssss...
Se...

Ssss...

Sons sibilantes
Surgiram
Sentia-os...

...

Sucumbiram
sob a força esmagadora
de toda a existência que domina...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Por onde vais de cabeça perdida nas colinas dos teus ombros?
Teus passos têm o peso do tempo,
tuas mãos a incerteza da solidão
e no brilho mortiço dos teus olhos lê-se a dor do abandono.

Para onde vais de asas cortadas e não feridas?
O movimento deixou de ter relação com o futuro.
Agora tudo é presente,
um presente repetido na cadências dos dias.
Das horas sentes o pulsar da ausência,
dos minutos, a vontade de nada
e os segundos, esses fogem-te...
"Que fujam para longe e não tardem!"
Gritaste e eu ouvi,
ouvi porque não me disseste...
Então chorei as lágrimas que não tinhas,
o cansaço teu companheiro,
e virei as costas,
por chorar o que não tinha direito.

sábado, 27 de março de 2010

Borboleta

Voa, voa!
Mas não voou...

O vento embalando
auspícios de uma primavera tardia
e não se largava,
como outrora.

As asas já não eram suas,
emprestou-as ao acaso,
esse acaso que dá forma.

Abandonando-se,
num derradeiro momento de vontade,
ficou ali,
animada por outra energia que não a sua,
imóvel,
como tudo o que viveu.

Ali estava,
ou esteve,
num rápido piscar de olhos.

domingo, 7 de março de 2010

E...

agora,
que cansados foram os dias,
nos braços de alguém repousas
e em gestos carinhosos te desvaneces.

Resta sofrer...
Resta-me doer
o peito,
a alma,
a razão que se ultrapassou em vestes de loucura,
em quedas de meia lua,
Pois estás,
Sei que estás,
Com essa amada tua.