segunda-feira, 30 de maio de 2011

V

O relógio marcava pontualmente as quatro horas. Quatro horas, a hora esperada. Era como se os minutos, os segundos que a compunham fossem demasiado grandes, ou estivessem dilatados. A qualquer momento os ponteiros desintegrar-se-iam, conscientes de que mais nenhuma hora, minuto ou segundo teriam importância para serem indicados. Não, comparados com aquelas exactas quatro horas.


O hábito, quase obsessivo, da pontualidade fazia com que as quatro horas fossem como que antecipadas, instalando um sentimento misto de euforia e receio, bem antes dos ponteiros dos minutos e segundos se alinharem verticalmente. Provavelmente a sensação de dilatação provinha mais do vício de viver na antecipação, do que duma alteração na relação espaço-tempo, ou do que do êxtase do relógio, em dar as quatro horas certas.


É estonteante a velocidade a que o presente se torna passado ou a que o futuro se torna presente. E, embora o tempo seja percepcionado de forma linear e unívoca, na verdade as relações presente-passado e futuro-presente têm naturezas distintas e comportam significados diferentes, quase opostos.


A primeira, presente-passado, é uma relação pesada, lenta, movida pela nostalgia do que foi, já não é. É revestida pela aura, quase sacralizada, do inalcançável, do pertencer ao domínio do que se findou. Inevitavelmente surge um sentimento de perda, associado à impossibilidade de agir, ao activo, que se torna inactivo e ao mergulho na neblina das recordações, do que foi, mas podia não ter sido, ou do que não foi, mas que queríamos que tivesse (nem que por um segundo) sido. Contudo, o que interessa para o curso temporal que percorremos é que foi, já não é.


A segunda relação, futuro-presente, é rápida, fugaz, aliás, acelerada como se estivesse em rota de colisão. Por vezes afigura-se a uma imposição vinda de surpresa, outras vezes a uma confirmação de algo pressentido. Aqui não há lugar para a nostalgia, pois encontramo-nos no plano da praxis, do finalmente fazer.
Independentemente da ansiedade que esta relação implica (superior à relação presente-passado) ambas relações possuem em comum o seu determinismo e a aceitação, mais ou menos pacífica, por via da univocidade.


Com isto, a relação de futuro-presente num ápice passou à relação presente-passado e já eram quatro horas e quinze minutos. A passagem de futuro a passado resumia-se, afinal, a uma palavra: ESPERA. E a espera prolongou-se e prolongava-se. A dilatação das quatro horas estendeu-se interminavelmente até ao sol posto e ao frio insuportável do entardecer.


Entardeceu. Entardeceram as quatro horas e o que me restou foi a espera e a nostalgia do que podia ter sido, mas não foi; do que devia ter sido, mas que a surpresa do futuro, tornado presente, indelevelmente transformara em passado, no que não foi.

sábado, 28 de maio de 2011

Ruído

E tudo o que me rodeava era um imenso ruído.
Vibrava,
ressoava
como um arrepio.

Sem aviso,
sem permissão
e sem pudor,
entrava...

Aos poucos instalara-se
e derivava,
oscilando em rectas perturbadas.

Privado de direcção,
estendeu-se.
Rodopiou numa espiral,
contorcendo-se,
e eclipsou-se.

Subitamente,
a ausência de som,
a calma,
e não contagiavam:
dilaceravam!

Tentei gritar,
calei.
Tentei falar,
falhei.

Só silêncio,
o perturbador silêncio...

E o ruído?
O ensurdecedor ruído?

Findou...
Engoli-o!

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Brisa



E então foi como se a brisa da tarde se animasse pelo beijo sôfrego do sol.

Aconteceu, eu encontrar-me no seu caminho...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A noite estremeceu
sob a voz silenciada.

Na distância dormente
a dúvida brota dissonante,
por entre murmúrios imperceptíveis
e sombras que se adensam,
demasiado tangíveis.

Em que monólogos
ganha forma a incerteza?

E o abandonado corpo sinuoso,
imbuído pela cadência do sono,
sugere longíquas paisagens,
tecidas com fios dourados.