segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

IV

A luz entrava pelas portadas entreabertas, como que buscando um alvo, uma pálpebra, talvez, distraída pela candura do sono. No entanto, foi um olhar que atingiu, desperto, disperso, e que subitamente incitado a focou de volta. Pequenas partículas dançavam na diagonal que trespassava o quarto e reluziam, fugazmente, para acabarem por emergir, de novo, na envolvência negra. Era aquilo a felicidade, uma brecha momentânea na escuridão, captada num relance.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo, distraindo-a do estado de contemplação em que a luz a mergulhara. Somente o fervilhar, sob a forma de calor, e um suspiro súbito denunciavam outra presença sobre os lençóis. Não era uma ilusão, trazida pelos subterfúgios enganadores do sono, nem um anseio expectável, por algo que ainda não tinha sido. Aquele era o presente, o agora que anulava o nunca.

Numa tentativa de gravar corporeamente o momento percorreu primeiro os lábios, depois o recorte curvilíneo do pescoço e deteve-se no peito, onde se tornava evidente que o ritmo da vida era diverso do da noite anterior. O enlevo impetuoso tinha dado lugar a um ostinato grave e regular, menos sincronizado com o seu. A volúpia refreara e a respiração tornava-se quase imperceptível.
Do meio do silêncio um abraço envolveu-a e selou o que viria a ser a recordação daquele instante.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

III

Acordou com dores que a impregnavam. A noite fizera-lhe mal. Ou ela, ou o peso do seu próprio corpo espalmavam-na contra o chão, num misto de inércia e atracção gravítica.
Lá fora calavam-se as últimas aves nocturnas e remexiam-se as primeiras da manhã, mas a fixação em si própria não lhe permitia desfrutar da envolvência.
A custo apoiou-se na cadeira, como uma criança que depois de um tombo se segura às pernas da mãe, e ergueu-se. Afinal a sua cabeça talvez tivesse algum tipo de conteúdo, uma vez que agora sentia-o; e devia assemelhar-se ao chumbo, pois eram quilos, toneladas, que teimavam em mantê-la na horizontal.
Pensamentos desconexos formavam-se na orla do seu consciente. Pediam que os soltasse, ou que, pelo menos, os tentasse balbuciar, mas quando o silêncio se instala é quase impossível quebrá-lo.

"La mer, la fin... le féminin..."

E o discurso transcorria primeiro em gotas, depois em torrentes que se adensavam e jorravam pela face, como que inanimada.
Subitamente, a sua atenção foi de novo direccionada para o exterior. Começara a chover e os beirais multiplicavam o coro de gotas (outras!), vindas algures do céu. Que afinidade sentiu, quase sob a forma de consolo... Curiosamente o que as distinguia das suas era tão somente a ausência de sal e sentiu-se menos só, pela amplificação que a chuva repentina lhe proporcionava.

Qual teria sido o percurso que a trouxera ali? Que consequências? Que acasos?... Que desígnios haviam congeminado?

Nada, nenhuns..

Um conjunto de escolhas que agora a cercavam e a ameaçavam estrangular, a qualquer momento.