segunda-feira, 31 de março de 2014

VI

As palavras têm vícios. Encadeiam-se, emparelham-se, atraem-se, circunscrevem-se entre margens e ganham a estaticidade do hábito. Na verdade, são semelhantes às pessoas nas suas rotinas, embora um travo de tinta permanente não se compare à companhia de uma boa dose de outros líquidos dotados de propriedades mais efémeras.
Por vezes emaranham-se, rebolam-se num contorcer de pernas (ou penas) partidas, misturam-se e quase perdem a sua identidade, por girarem e gerarem novos contextos, ou sem textos, dependendo da prosódia ou da rima.
Também as há espartilhadas, apertadas, sufocadas entre vírgulas que se assemelham às quatro paredes de uma prisão, mas o discurso transcorre, correndo, e escorre como fluidos circulantes aprisionados num percurso infinito de tédio e vida.
No fundo, as palavras são baratas, não no seu sentido entomológico (embora esta constatação dependa da tinta que as compõe), que se lhes assemelham mais em significância do que em forma ou estilo. Circulam em palcos brancos, descrevendo retas que se unem em círculos, em espirais, quais borrões em catadupa e velocidade estonteante, resumindo-se à ausência de esforço ou a uma valente pisadela no alto do seu exosqueleto.
Podemos presumir, finalmente, que não têm vida, pois trazem somente prenúncios e silêncios, qual boca derradeira.
"A solidão abraça e abarca a todos..."
Presumir assim como presumimos e resumimos outras e mais verdades inválidas, tanto na sua formulação, como no seu âmago encadeia-nos num discurso tautológico: o amor está do coração. Pois, de facto, não só não se acumula nas coronárias contracurvas, nos meandros do miocárdio e pericárdio, no colesterol das arteriais autoestradas, como de veras não está, nem tão pouco vem nem vai de e para lado nenhum, simplesmente evapora-se.
Noutras circunstâncias, não menos frequentes, revestem-se (as palavras)  de movimento, de temperamento, de imprevisibilidade (acham elas) e falam de outros mundos, de sonhos e irrealidades, de projeções e esperanças (cegas pela opacidade das folhas que habitam). Nesses momentos, contorcem-se e exasperam conscientes da sua previsibilidade, que nunca lhes trará a visibilidade do acaso, da inconsequência, da eventualidade.
É... as palavras têm vícios e eu também.

Sem comentários: