segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

IV

A luz entrava pelas portadas entreabertas, como que buscando um alvo, uma pálpebra, talvez, distraída pela candura do sono. No entanto, foi um olhar que atingiu, desperto, disperso, e que subitamente incitado a focou de volta. Pequenas partículas dançavam na diagonal que trespassava o quarto e reluziam, fugazmente, para acabarem por emergir, de novo, na envolvência negra. Era aquilo a felicidade, uma brecha momentânea na escuridão, captada num relance.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo, distraindo-a do estado de contemplação em que a luz a mergulhara. Somente o fervilhar, sob a forma de calor, e um suspiro súbito denunciavam outra presença sobre os lençóis. Não era uma ilusão, trazida pelos subterfúgios enganadores do sono, nem um anseio expectável, por algo que ainda não tinha sido. Aquele era o presente, o agora que anulava o nunca.

Numa tentativa de gravar corporeamente o momento percorreu primeiro os lábios, depois o recorte curvilíneo do pescoço e deteve-se no peito, onde se tornava evidente que o ritmo da vida era diverso do da noite anterior. O enlevo impetuoso tinha dado lugar a um ostinato grave e regular, menos sincronizado com o seu. A volúpia refreara e a respiração tornava-se quase imperceptível.
Do meio do silêncio um abraço envolveu-a e selou o que viria a ser a recordação daquele instante.

1 comentário:

Marta C. disse...

E os novos capítulos? :)